ENSINO Data de Publicação: 01 fev 2019 11:14 Data de Atualização: 01 fev 2019 12:26
— Você fala francês? — perguntaram.
— Muito pouco — afirmou, sincera, Marcela Rocha, estudante do curso de Gastronomia do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), no primeiro dia dos dois meses de trabalho que teria pela frente no Hotel Clarion Collection Les Flots, na cidade de Chatelaillon Plage, no Liceu de Hotelaria de La Rochelle, na França.
Depois de confessar seu pecado linguístico, Marcela, que trabalharia como ajudante da cozinha nos turnos de almoço e jantar entre setembro e novembro de 2018, passou a ser ignorada por grande parte da equipe do restaurante. Não era fluente no idioma, mas sabia o suficiente para entender as piadas machistas que ouvia de alguns funcionários por ser a única mulher na cozinha. Pensa que o tratamento tinha a ver com o fato de não ser francesa.
“Nas últimas duas semanas, chegou outra menina para trabalhar lá. Como ela era francesa, a recepção foi completamente diferente. Quando ela chegou, uma das primeiras coisas que o gerente fez foi apresentar os itens do cardápio e mostrar como cada um era servido. Eles nunca me apresentaram o cardápio. Pude perceber a diferença com que as pessoas me trataram, acho que por ser estrangeira”, diz.
Ao menos podia contar com Paulo, subchef do restaurante imigrado da Romênia e que também não falava francês quando chegou. Ele explicava as coisas para Marcela, repetia devagar e quantas vezes fossem necessárias, ajudava a entender a pronúncia das palavras, perguntava como ela estava. No início, a cordialidade com a estudante só vinha de Paulo.
Ela conta que um dos chefs a ignorava ou até mesmo a tratava com rispidez. Quando Paulo avisou que sairia de férias no meio do estágio, ficou apavorada. “Só que o chef mudou completamente comigo. Virou simpático, me ajudava, me ensinava. Não sei o que aconteceu, mas ele mudou. Me senti mais segura e tranquila, passou aquela ansiedade. A pressão que ele fazia antes acho que ajudou a me concentrar”, diz, e lembra de uma reunião que teve com as professoras do IFSC antes de ir.
Os estudantes foram alertados de que é comum e poderia acontecer de testarem os novatos para saber quem está preparado para aguentar a pressão da cozinha no futuro. Justo com Marcela, que trabalhou e estudou durante a graduação inteira e, aluna de cotas raciais, de escola pública e de renda, será a primeira mulher negra cotista a se formar no curso de Gastronomia do IFSC.
Justo com Marcela que estudou francês com a ajuda de um primo e, sem dinheiro para bancar o estágio, criou uma vaquinha pela internet e arrecadou a quantia necessária em cinco dias. Por ter tanta gente ajudando, teve receio de não corresponder às expectativas de seus apoiadores. Mas essa Marcela que só sabe viver com serenidade, na voz, no olhar, no jeito de falar, e em tudo, passou, é claro, no teste. No último dia, estava até fazendo feijoada para os colegas da equipe.
Apesar de contar que, em relação à parte técnica, não viu nada que já não tivesse aprendido na graduação, Marcela diz que passou a ter mais postura dentro da cozinha, a se concentrar e se organizar melhor. “Tudo acontecia na hora certa e os erros eram corrigidos muito rapidamente. O respeito à hierarquia e entre as pessoas também é muito grande”, ressalta. Acostumada a morar sozinha, sentiu falta dos sobrinhos, com quem foi se encontrar em Japeri, no Rio de Janeiro, sua cidade natal, assim que retornou para o Brasil. Mas diz que o tempo passou muito rápido.
E se divertiu fazendo amizade com Ralfran Marques, estudante de Hotelaria também do IFSC, que só conhecia de vista antes do intercâmbio. “Ele me falava ‘ó, você não fecha a porta desse quarto porque esse quarto é nosso, não é seu”, lembra, rindo. “A gente tinha folga junto, passeava, ficava conversando, rindo, tentando entender o que passava na televisão. Ele foi muito legal, foi bom que ele estivesse lá. Ficamos amigos. De vez em quando a gente se fala. Se eu já estivesse em Floripa teria dado umas voltas com ele”, ri, mais uma vez.
Marcela está em Japeri com a família e deve retornar à Florianópolis na metade de fevereiro. Aos 33 anos, depois do aniversário que comemorou com o amigo Ralfran na França, ela vai terminar o TCC e se formar neste semestre.
“Meu trabalho é sobre palavras e expressões que usamos popularmente e ligam alimentação, prazer e sexualidade. Tem muitas palavras ligadas à sexualidade com duplo sentido que tem a ver com alimentação. Comecei a prestar atenção em como a gente usa. Lua de mel, linguiça, as próprias palavras ‘comida’ e ‘gostosa’, são palavras aplicadas a outro contexto e não se pensa muito sobre”, explica.
O material de análise tem canções de autores que vão de Caetano Veloso à Tati Quebra Barraco. Marcela quer voltar para a França e trabalhar mais no país. Diz que a experiência foi boa. “Acho que valeu muito a pena, tanto que quero voltar. Me fez perceber uma cultura muito diferente da nossa e gostei muito da experiência. Aprendi mais do idioma, descobri que sou mais paciente do que imaginava e consigo lidar com os desafios de outra forma agora.” E esse outro jeito de lidar com tudo ainda é um jeito marcado pela serenidade. Serenidade de Marcela, que contorna os percalços da vida e conquista a ajuda de desconhecidos. Serenidade que carregou para a França, veio de Japeri, e a levará para onde quiser.