IFSC VERIFICA Data de Publicação: 26 mar 2024 04:20 Data de Atualização: 20 mai 2024 18:29
Já ouviu falar no “boimate”? Esse foi o nome dado a uma suposta planta que teria sido criada em laboratório por cientistas alemães em 1983. Eles teriam combinado genes de um boi e de um tomate, dando origem a um tomateiro com fruto de casca semelhante ao couro, com seu interior contendo discos de proteína animal e de tomate intercalados. Essa novidade, divulgada pela renomada revista Veja na edição de 27 de abril daquele ano, era tão fantástica que não parecia ser verdade. E, bem… não era verdade mesmo.
Veja acabou republicando como notícia uma brincadeira de 1º de abril (o chamado “Dia da Mentira”) feita pela revista britânica New Scientist. A publicação brasileira chegou a entrevistar um engenheiro geneticista que ficou impressionado com a novidade. O pouco conhecimento que se tinha na época sobre a engenharia genética ajuda a explicar esse engano, admitido pela revista cerca de dois meses depois.
Passadas quatro décadas desse episódio - até hoje lembrado em aulas de cursos de jornalismo e de comunicação -, as possibilidades que a engenharia genética traz ainda não são totalmente compreendidas pelo público leigo. Um exemplo disso são os alimentos transgênicos, alvos de debates sobre sua segurança e impacto para a saúde humana.
“A gente percebe que as pessoas não sabem o que são os alimentos transgênicos, embora já tenham ouvido falar deles”, conta a professora Gladis Teresinha Slonski, do Câmpus Florianópolis-Continente do IFSC, que trabalha o tema transgênicos com estudantes de cursos de diferentes níveis (técnico, graduação e especialização).
Para saber mais sobre os transgênicos, se seu consumo é seguro para a saúde humana e os impactos sociais, econômicos e ambientais deles, conversamos com Gladis e mais dois professores. O currículo de todos eles apresentamos a seguir.
Gladis Teresinha Slonski é professora do Câmpus Florianópolis-Continente do IFSC. Possui graduação em Ciências Biológicas, com mestrado em Biologia Vegetal e doutorado em Educação Científica e Tecnológica.
Helaine Carrer é professora do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), na cidade de Piracicaba (SP). Possui graduação em Engenharia Agronômica, com mestrado em Ciências e doutorado em Biologia Vegetal.
Luís Carlos Vieira é professor do Câmpus Canoinhas do IFSC. Possui graduação em Agronomia, com mestrado em Produção Vegetal e doutorado em Melhoramento e Biotecnologia Vegetal.
Como é produzido um transgênico?
A tecnologia que deu origem aos alimentos transgênicos é chamada “DNA recombinante” e foi desenvolvida na década de 1970. Ela consiste, segundo explica o professor Luís Carlos Vieira, do IFSC, na incorporação de genes de espécies que não se reproduzem em condições naturais, como, por exemplo, entre seres dos reinos animal e vegetal, ou entre espécies de plantas distintas.
“A tecnologia desenvolvida para o processo de criação de um transgênico abriu possibilidade de isolar, manipular e identificar genes de interesse em organismos vivos e introduzi-los em outros organismos”, destaca Luís. Ou seja: genes de uma espécie são selecionados em laboratório e incorporados ao DNA de outra, que vai desenvolver características novas e desejadas que ela não teria naturalmente ou que demorariam várias gerações para aparecer em caso de cruzamento com plantas da mesma espécie.
“É o DNA que carrega as informações para síntese de proteínas, e modificações nos genes podem afetar a proteína a ser sintetizada, o que poderá ocasionar o desenvolvimento de uma característica, que, até então, não era presente no organismo original”, detalha Luís. Um dos exemplos da transgenia é a inserção de genes da bactéria Bacillus thuringiensis em plantas para torná-las mais resistentes a pragas, pois aquela bactéria produz proteínas com propriedades tóxicas específicas para insetos.
Criar plantas mais resistentes a pragas foi o objetivo inicial da transgenia. Por meio dela, é possível também produzir variedades que cresçam mais rápido ou que se adaptem melhor a condições específicas de clima e ambiente. Além da produção de alimentos, essa tecnologia é usada na área da saúde para produção de vacinas, medicamentos e até mesmo de insulina para tratamento de pessoas diabéticas.
De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), são transgênicos mais de 90% do milho e da soja produzidos no Brasil - e esses são os dois principais produtos agrícolas do país, que servem de matéria-prima para vários alimentos industrializados e também para ração consumida por frango, bovinos e outros animais dos quais nos alimentamos.
O Brasil é o segundo maior produtor de transgênicos do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Feijão e algodão são outros produtos que se destacam na produção transgênica brasileira.
É seguro comer alimentos transgênicos?
Os alimentos transgênicos são consumidos há mais de 20 anos em pelo menos 50 países (segundo a Embrapa) e, nesse período, diversas pesquisas foram feitas para avaliar seu impacto sobre a saúde humana. Uma preocupação que surgiu no início do consumo de alimentos transgênicos era de que eles poderiam causar alergias e até doenças como o câncer.
Em 2016, a Academia Nacional de Ciências, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos (Nasem, na sigla em inglês) publicou um relatório após consulta a mais de mil estudos científicos e avaliação de mais de 20 anos de dados sobre doenças e plantações naquele país, afirmando que o consumo dos transgênicos não traz risco à saúde humana. A Nasem é uma organização licenciada pelo Congresso dos Estados Unidos e serve como academia nacional coletiva de ciências do país norte-americano.
A Embrapa, empresa pública do governo federal, também defende que os alimentos transgênicos são seguros e afirma em seu site que a Lei de Biossegurança brasileira - Lei 11.105, de 24 de março de 2005 - é uma das mais rigorosas do mundo. Essa lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGM, sigla por vezes usada para identificar os transgênicos) e seus derivados.
Para a professora Helaine Carrer, da USP, o medo com relação ao consumo de transgênicos tem mais ligação com a falta de conhecimento e com questões ideológicas do que com comprovação científica de supostos malefícios. “Deve-se respeitar cada pessoa. Mas é importante a gente passar o conhecimento de que são tecnologias que vêm trazendo avanço para a agricultura e para a qualidade de vida”, opina.
Helaine destaca que, antes de poder ser comercializado, todo produto transgênico que é desenvolvido passa por diversos testes em laboratórios para avaliar se pode trazer risco à saúde humana (análise de toxicidade). O processo de aprovação de um produto transgênico pode levar até 10 anos.
O uso do DNA de bactérias é um dos fatores que pode causar medo, pois esses organismos estão associados no senso comum a doenças e, para os leigos, uma bactéria é muito diferente de um pé de milho. Mas, segundo explica a professora Helaine, a composição química do DNA é a mesma para todos os seres vivos.
Seja uma mosca, uma goiabeira ou um ser humano, todos os seres vivos possuem a mesma estrutura de DNA, formado por partes menores chamadas nucleotídeos, que são de quatro tipos: adenina, citosina, guanina e timina. Todas as espécies possuem esses mesmos nucleotídeos, mas em quantidades distintas e ordenados de modo diferente em cada uma das espécies: é isso que faz os seres vivos serem tão diversos entre si.
“O código genético é universal. A proteína produzida por uma bactéria é a mesma produzida por um ser humano. Nós comemos DNA o tempo todo. Ele vai ser digerido da mesma forma, seja uma planta comum ou uma que tem um pedaço de DNA de outro ser”, diz Helaine.
A professora Gladis Slonski, do IFSC, defende que a segurança dos transgênicos ainda é controversa, pois há pesquisas que sugerem a relação entre o consumo deles e o surgimento de alergias. “Ainda não se tem certeza. Alguns estudos dizem que sim [que o consumo de transgênicos é seguro], outros dizem que não. Não há consenso”, afirma.
Atualmente no Brasil, se um alimento tem algum produto transgênico em sua composição, em qualquer quantidade, a informação deve estar indicada no rótulo por meio do símbolo da letra “T” gravada em preto, dentro de um triângulo amarelo. Tramita no Senado um projeto de lei para que essa indicação não seja mais obrigatória caso a quantidade de transgênicos seja inferior a 1% da composição total do produto.
Além da saúde humana, os transgênicos têm impactos - que podem ser positivos ou negativos - ambientais e socioeconômicos, de acordo com os especialistas entrevistados pelo IFSC Verifica.
Quais são os impactos dos transgênicos para o meio ambiente?
Segundo a professora Gladis Slonski, na área ambiental um dos principais impactos negativos dos transgênicos é o de que eles podem ameaçar cultivos tradicionais e orgânicos, pois variedades modificadas geneticamente de plantas como o milho podem se reproduzir com espécies nativas e, assim, gerar um híbrido também transgênico.
O professor Luís Carlos Vieira explica que a reprodução do milho ocorre por meio da dispersão do pólen pelo ar, podendo as partículas alcançarem outras plantas da espécie distantes até 500 metros. Se um cultivo transgênico estiver próximo de um não transgênico, há risco de cruzamento entre eles. É o que se chama de “polinização cruzada”. Vale lembrar que uma produção orgânica, por exemplo, não pode usar transgênicos e seria prejudicada em caso de polinização cruzada.
“A disseminação de pólen transgênico gerando contaminação genética é um fato preocupante e de fácil de ocorrência, principalmente quando há nas proximidades cultivos de cultivares transgênicos e de cultivares ou variedades convencionais, crioulas e ou mesmo espécies silvestres de plantas que realizam polinização cruzada”, explica Luís Carlos. Variedades crioulas são populações conservadas que foram obtidas através de seleção e cruzamento natural realizada pelos agricultores ao longo de muitas gerações, conforme define a Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri).
A professora Helaine Carrer, da USP, também considera esse um problema que os transgênicos podem trazer, ameaçando a biodiversidade. Ela considera que o desenvolvimento da engenharia genética tem permitido aos cientistas conhecer melhor a biologia das plantas e que, por isso, é importante que a diversidade delas seja preservada. “Deve haver uma distância segura para os cultivos não transgênicos, para que a gente não perca essa biodiversidade”, afirma.
Ainda na área ambiental, o cultivo de transgênicos traz mais duas preocupações principais. Uma delas diz respeito ao possível aumento no uso de agrotóxicos - ao contrário do que se imaginava inicialmente e do que prometia a engenharia genética -, pois nem todas os indivíduos de uma espécie considerada “praga” são afetados pelos genes de resistência implantados nas plantas geneticamente modificadas.
Com isso, mais agrotóxicos precisam ser usados para combater as pragas “super resistentes”, o que pode ocasionar poluição do solo e da água. A professora Gladis Slonski lembra que a análise da água consumida em algumas cidades catarinenses apontou alto índice de defensivos agrícolas, inclusive em uma pesquisa feita pelo Câmpus Itajaí do IFSC.
Um levantamento realizado por pesquisadores da USP mostrou que, entre 2003 e 2021, o uso de agrotóxicos no Brasil aumentou 392%, muito acima do acréscimo de área usada para agricultura no mesmo período (80%). A maior parte desses produtos (76%) foi usada em cultivos de soja e milho que, como vimos, são predominantemente transgênicos. O total de 720 mil toneladas de agrotóxicos utilizados no país em 2021 colocou o Brasil como líder mundial de consumo desses produtos.
É importante recordar que os seres vivos que consideramos “pragas” por prejudicarem a produção agrícola têm seu papel no equilíbrio do meio ambiente. Se uma espécie de inseto desaparecer, por exemplo, isso pode afetar toda a cadeia alimentar de um ecossistema.
Por outro lado, os transgênicos podem ser benéficos ao meio ambiente por permitirem um aumento da produtividade nos cultivos e, consequentemente, diminuírem a área necessária para produzir a mesma quantidade de alimentos. “Hoje, no Brasil, a área plantada já é suficiente para a produção de alimentos”, diz a professora Helaine Carrer.
Ela ressalta que a tecnologia permite, ainda, que terras que deixaram de ser usadas para agricultura possam voltar a ser úteis, pois as plantas podem ser modificadas para se adaptar a elas. Com a transgenia, é possível desenvolver variedades que adaptam-se melhor a climas e ambientes em que a espécie originalmente não se desenvolvia, a situações extremas, como a seca, e mesmo às mudanças climáticas em geral.
Quais são os impactos socioeconômicos dos transgênicos?
O uso da transgenia na produção agrícola tem como um de seus objetivos diminuir custos na produção. Atualmente, porém, ela não é uma tecnologia acessível a todos.
Os custos da produção de sementes transgênicas e o seu patenteamento pelas empresas que as desenvolvem tornam seu acesso difícil a pequenos produtores. “No preço de uma semente transgênica, está embutido o custo de ‘royalties’. Ou seja: ele [o agricultor] pagará pelos direitos intelectuais da empresa. Esse custo é muito elevado para os padrões de uma pequena propriedade”, destaca o professor Luís Carlos.
As empresas também costumam vender as sementes junto com um “pacote tecnológico” que inclui insumos e agrotóxicos específicos para elas, causando um problema de monopólio da tecnologia. Segundo o professor Luís Carlos, as seis maiores empresas mundiais que atuam no ramo de alimentos são também as que se destacam no mercado de transgênicos, pois controlam 60% do mercado de sementes e aproximadamente 70% do mercado de insumos, pesticidas e agrotóxicos.
A transgenia pode impactar, ainda, a variedade do que comemos. Com a produção em larga escala de poucas variedades e seu uso como ingrediente para vários alimentos, corre-se o risco de ocorrer a chamada “monotonia alimentar”: uma alimentação com pouca variedade de produtos e, por consequência, de nutrientes. “Na história humana, já consumimos mais de 10 mil espécies diferentes de vegetais, mas hoje são selecionados aqueles que têm mais durabilidade e são mais rentáveis. Isso tem trazido uma monotonia para nossa alimentação”, comenta a professora Gladis Slonski.
Uma possibilidade que a transgenia traz, porém, é o aumento da qualidade nutricional do produto, melhorando sua aparência e conteúdo nutricional.
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